terça-feira, 17 de junho de 2008

UM DIA HÁ MUITOS ANOS TIVE UMA NOITE ASSIM...

Nuno levou-os ao aeroporto numa terça-feira à noite. Atravessaram o recolher obrigatório pouco antes da meia-noite, estranhando o vazio desolador das ruas desertas, o silêncio inquietante da cidade-fantasma. Os ocasionais postos de controlo do Exército, colocados nos cruzamentos-chave, eram a única prova de que os habitantes da cidade de asfalto ainda por lá andavam. Três ou quatro soldados encostados a um jipe descapotável, a fumar uma cigarrada, entretidos com uma conversa de treta e falsamente descontraídos, com a G-3 a mover-se como um prolongamento do braço, porque os imprevistos sombrios que custavam vidas ao aconteciam quando um gajo relaxava a pensar que era uma madrugada sem história, punham o cigarro ao canto da boca ou atiravam fora a beata para agarrar na metralhadora com as duas mãos ao verem um carro aproximar-se. Deixavam o dedo encostado ao guarda-mato, pronto a saltar para o gatilho, e apontavam o foco de luz de uma lanterna para o interior do automóvel. Nuno aproximava-se a baixa velocidade, parava o carro, exibia os bilhetes de avião, explicava que ia levar a família ao aeroporto, e não se esqueçam de mim rapazes, que tenho de voltar para casa.
In "O ÚLTIMO ANO EM LUANDA", de Tiago Rebelo
Substituam os protagonistas adultos pelos meus pais (que continuaram em Luanda) e a "família" por 2 pré-adolescentes de 13 e 11 anos (que vieram para Portugal, sozinhos) e têm o meu último dia em Luanda, exactamente no ano em que a acção deste livro se passa.

10 comentários:

Patti disse...

Oh pá, oh coisinha morena do meu coração.... 'tou a ler esse livro também!

E penso sempre em ti, quando fecho as páginas antes de dormir.

Como terrá sido!

Gi disse...

patti: Eu sei que estás a ler. Vi no teu blogue.
Foi mau, muito mau; tudo aquilo que lá está descrito foi exactamente assim.
Houve casos piores que o da minha família, evidentemente ... mas é por isso que eu não posso ter achado que o 25 de Abril de 1974 foi bom, principalmente, porque não vejo PORTUGAL ter saltado para a cabeça da Europa ...e muito haveria para dizer.

Laetitia disse...

Bolas...

O meu pai estava cá hospitalizado e perdeu tudo o que tinha deitado numa cama do hospital.

Concordo contigo, pois só vejo Portugal a retroceder.

Beijos

pensamentosametro disse...

Gi,

Lembro-me bem desses dias, já falámos sobre eles. Há memórias que nunca perdem o brilho ainda que pela negativa. Que saudades da minha querida Lourenço Marques...

Beijos, toca a espevitar!

Tita

Unknown disse...

Não vivi nesse periodo mas sei, pelas histórias que ouço, que foi mesmo mau. Se calhar até querias/gostavas de lá estar mas devido à merda da politica tiveste de vir para cá e, se calhar, de mãos a abanar. Espero que tenhas "dado a volta por cima" pois tenho familiares directos (sogros e cunhados) que tiveram de deixar tudo (mas mesmo tudo. Tu deves saber o que é isso) e ainda hoje não superaram muito bem essa situação. Podera: lá tinham tudo e tiveram de vir para a merda se queriam sobreviver. Desculpa a linguagem, Gi, mas estas histórias revoltam-me. Como é possivel que tenham deixado tanta gente sofrer dessa forma???

@ღღ@ disse...

pois deve ter sido sim,
e o pior
é que continua a acontecer
em muitos sitios.

não vivi isso em moçambique
porque so la estive
durante a guerra.

mas olha
tenho muitas muitas saudades,
não da guerra claro mas de africa.

Gi disse...

leninha: Há coisas, situações, pessoas que se esquecem ... há outras que se perdoam, outras ainda esquecem-se e perdoam-se.
Há outras que não, apesar de ter dado a volta por cima.

Hélder disse...

Gi-raça,

Como sabes, estou há 3 semanas em Luanda. Já falámos sobre o estado das coisas por cá. Conheço pessoas que cá estão desde 1993. Viveram com armas de fogo debaixo da almofada, atravessaram fases difíceis. Mas todos me dizem que está muito diferente, e eu constato-o.

Com o devido desconto, nao sinto muita insegurança, não sinto ódio. Sinto uma sociedade que quer prosperar, que está a tentar ultrapassar os constrangimentos vários de que ainda padece, e que gostaria de ficar livre de conflitos.

Mas não posso, embora não o tenha vivido, deixar de concordar com quem, em Portugal, quis sair da privação da liberdade. Sou quase anarquista neste aspecto, prefiro que se peque por liberdade a mais do que se prive em demasia.

Gi disse...

htsousa: Nesta altura Angola, mais propriamente Luanda, onde estás ... não vive um clima de guerra!
Eu vivi um ano de guerra e sei o que vivi!
Sei o que foi não ter liberdade numa colónia (na altura AINDA era colónia) em que supostamente o 25 de Abril de 1974 também era para lá teres liberdade.

Cláudia disse...

Acredito que estas coisas não se esquecem!
E deve ter sido difícil!