UM EPISÓDIO DA REVOLTA DOS RANES
[Narrado pelo CONDE DE MAHEM in GOA NOSSA TERRA (1940), PG. 83/85]
Pangim parecia deserta. Os habitantes, aterrados, refugiavam-se nas suas casas, com as portas e janelas fortemente aferrolhadas. Aqui e além, barricadas que a diminuta guarnição europeia havia erguido com o auxílio dos funcionários e até de magistrados, armados de pistolões e grandes espadas, a contrastar com o seu trajo civil. Na cabeça traziam "helmets" - capacetes - com lenços a abrigarem a nuca. Os bonés dos militares também ostentavam um pano de lona para esse fim.
Por motivo da minha doença - febres intermitentes - encontrávamo-nos minha mãe, meus irmãos e eu no concelho (sic) de Assolnã, que um tio meu, o poeta Fernando Leal, administrava. Assim que soubemos da atitude dos ranes, procurámos juntar-nos a meu pai, que residia na capital, uns quarenta quilómetros distante de nós.
Já em plena estrada, naquela noite escura, pressentindo a aproximação dos revoltosos, os "boiás" - eram quatro - pousaram a mochila e abalaram. Fomos então cercados po indivíduos armados de lanças e espadas, com longas trombetas de forma espiral que soltavam sons vibrantes e prolongados. Seus corpos, húmidos de transpiração, reluziam com a luz de enormes e fumegantes archotes.
Meu irmãozinho ia ao colo da minha mãe e agarrados às suas saias eu e a minha irmã que, de olhitos vivos e destemida, procurava animar-me beijando-me.
Declarada a nossa identidade - filha, minha mãe, do Barcar Moensó -, um dos chefes apressou-se, cortêsmente, a avisar-nos de que íamos ser imediatamente transportados até a aldeia mais próxima. Minha mãe, reconhecida, ofereceu-lhes as jóias que levava e que eles aceitaram por extrema nec essidade e, ao devolver-nos as imagens presas aos cordões, disseram: "Um dia recompensaremos, Senhora". E lá nos levaram até às portas de ...(?). Fomos depois a pé até à fortaleza mais próxima.
Dessa atitude de minha mãe e doutras que se seguiram, protegendo-os, resultou que, tempos volvidos, um hindu de aspecto misterioso nos procurasse em Pangim e, depois de entregar aos criados um embrulhozinho, muito amarrado e sujo, com a indicação de ser entregue a Baí - Senhora -, desapareceu para não mais voltar.
Eram as jóias que minha mãe havia entregue aos ranes e que eles nos devolviam acompanhadas de uma soberba esmeralda, a mais bela gema que em Goa se viu então.
Esta revolta dos ranes iniciou-se com a deserção dos soldados maratas, qu abandonaram os quartéis por o Governo não autorizar que as suas mulheres os acompanhassem a Moçambique. Foi por volta de 1895 que a revolta se estalou e se estendeu de Satari (Novas Conquistas) aos confins de Canácona, no governo do visconde de Ourém. O primeiro embate deu-se à entrada da ponte de Ribandar com as tropas do comando de Gomes da Costa, então tenente de infantaria, não se registando baixas.
Meu avô e o visconde de Bardez foram nessa ocasião convidados pelo Governo para solucionar este incidente junto dos revoltosos, acampados em Sanquelim. Afirmavam eles não querer pegar em armas contra o seu soberano, o rei de Portugal mas apenas pediam que lhes dessem baixa de posto para poderem continuar na sua terra junto da família. Caso contrário se matariam, para não se fazerem salteadores.
Poucos dias depois, um transporte de guerra com a expedição vinda de Portugal, sob o comando supremo do Infante D. Afonso, subia o Mandovi.
Cantava-se nesse tempo uma canção guerreira, cuja letra começava assim:
Tambrê topy (1)
Fato de caqui
Marcha para Satari
... ... ... ... ...
O soldado marata vive mal longe das suas mulheres. É preciso contar com esta dificuldade, consequência da vida social do gentio, incapaz de se ocupar dos trabalhos caseiros. Separado da mulher, por motivo de serviço, serve com pouco entusiasmo.
Em face da situação, o infante anulou o despacho que os obrigava a seguir para Moçambique.
(1) Barrete encarnado
4 comentários:
Mais um excelente texto do teu pai...
parabéns :)
Este texto não é do meu pai é do Conde de Mahem; o meu pai apenas o transcreveu no âmbito da rubrica que assinava.
Mais tarde volto para este, para apreciar com calma.
Gostei da nobreza do acto daqueles ranes, ao devolverem as jóias e ainda juntando um presente extra.
"(...) vida social do gentio, incapaz de se ocupar dos trabalhos caseiros" - tão actual!
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