sexta-feira, 23 de abril de 2010

ONDE O POBRE ESCRITOR COMEÇA


Vou começar a escrever o meu livro no dia 25 de fevereiro.  Como tenho sempre muito medo marco uma data para obrigar-me a trabalhar e entretanto armo um esboço de plano para o destruir em seguida, plano que inclui inúmeros capítulos, nomes, inícios de frases, uma estrutura que não seguirei mas de que necessito como ponto de apoio para depois a destruir à medida que o texto se faz, ou eu o faço, ou nos fazemos um ao outro.  Um pouco de tudo isto, acho eu.  Não sei o que vai acontecer, sei que comporei uns sete ou oito primeiros capítulos, a repetir para mim mesmo
- Não é isto, não isto
até as palavras encontrarem a sua ordem e o seu caminho.  Durante dois ou três meses é assim, tentativa e desistência, tentativa e desistência, continuando à espera que as frases se tornem certas.  A partir do momento em que o material encarreira o texto principia a andar mais ou menos sozinho, com cada vez menos tropeções.
A segunda metade do livro demora um terço do tempo que demora a primeira, porque as páginas já ganharam uma alma e uma solidez que lhes pertence a elas, não a mim.  Um ano, um ano e meio para a primeira versão e depois meses de correcções e uma grande fatia daquilo tudo, desnecessária, para o lixo.  Cortes, cortes, cortes, cortes, cortes.  Começando a 25 de fevereiro ficará pronto em que altura?  Não me pergunto isso, e no caso de me perguntar desconheço a resposta.  Um livro é uma surpresa, enviesa-se, torce-se, segue por outros caminhos.  No final tudo se torna claro: era o que eu queria sem saber o que queria, e surpreende-me ser exactamente assim.  Conheço pouco de escrever
(quem conhece muito de escrever?)
e nos momentos bons escrevo melhor que eu.  De que zona, de que região minha nasce o que redijo?  Há em nós uma ciência das coisas que não fazemos ideia de possuir, e é a partir dessa ciência que se compõe.  Do último livro para este passaram cerca de três meses.  Três meses sem outra ocupação salvo estas croniquetas e o receio fundo de não ser capaz, a impressão de haver secado para sempre, a certeza que a papa doce terminou.  E se a papa doce terminou o que será de mim?  Fico vazio, sem sentido, desbossulado.  Quase não leio, quase não me mexo, respiro mal, uma culpabilidade esquisita amarga-me, não me acho eu, não sou eu.  Quem me é próximo sabe que vivo de quase nada, só não vivo sem uma caneta na mão.
Não sou ninguém sem caneta ao passo que com a caneta ainda valho algum chavo: justifica-me e confere-me nexo aos dias. Só espero que me concedam dar o livro por findo: há anos que peço isto a Deus: não me leves com o papel incompleto, carregado de defeitos, imperfeições, asneiras.  É curioso este sentido de missão, de acto
perdoe-me não estar a exagerar)
sagrado.  Fiz muitos erros na vida e, em certa medida, perdoo-me alguns.  Não me perdoo erros na escrita.  O meu pai costumava citar Herculano que dizia a propósito de Garrett:
- Por meia dúzia de moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias menos de uma frase mal escrita.
Para Herculano e para o meu pai essa era a pior das porcarias e eu concordo com eles.  Estou seguro que nos sete ou oito últimos livros que fiz não há uma frase mal escrita, e as patetices que encontro nos primeiros e não me sinto no direito de emendar indignam-me como um pecado sem remédio.  Não me sinto no direito de emendar dado que a pessoa responsável por elas não sou eu: ao fazê-las era um outro, um espécie de antepassado em que me reconheço mal e me escapa.  Quer dizer a vida dele foi a minha, a obra dele não e, no entanto, necessitei de ter sido outro para ser eu agora.  Este.  Movo-me hoje numa região interior que finalmente me pertence e na qual espero habitar mais uns quantos livros.  Estava a precisar de fazer esta crónica para dar fé do peso da mão, embora a textura da crónica seja muito diferente.   Não padeço o que padeço nos romances que não são romances nenhuns, são tudo.  Pelo menos quero que sejam tudo.  Não: exijo que sejam tudo.  E não devem nada a ninguém: não existe uma só voz alheia na minha voz, não devo o que for que seja a quem for hoje em dia.  Eis-me sozinho sem dedos alheios na minha massa.  Isto nem sequer é orgulho visto que sou humilde: é verdade.  Não passo de um pobre homem a contar com uma criação que o excede, de um escaravelho empurrando a sua bola.  Para onde?  Na direcção dos leitores, se calhar, na direcção de onde estamos todos, espero eu.  Na nossa direcção.  Não faço ideia do que vai ser de mim.  Um dia morro.  Paro.  Metem-me num buraco, fechado numa caixa.  Mas, é isso a minha salvação, hão-de ficar uns quantos tijolos de palavras a abrigarem a chamazinha frágil do meu nome.  E são os tijolos, não o nome, o que realmente importa.  Obrigado, vida, por me teres dado tempo de os construir.  Foi tudo o que pretendi, desde que me conheço.  E, dito isto, posso começar.

In “Visão” 20 de Março de 2008

3 comentários:

Patti disse...

Ai o SENHOR, o SENHOR ....

Paula disse...

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Anónimo disse...

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