A minha primeira (e aliás única) grande crise empresarial, ocorreu em 1946, ou 47. É difícil de precisar a data de um tal desaire. Foi o fim de uma carreira, quiçá o esboroar de uma vocação precoce.
Eu tinha oito ou nove anos, a minha sócia, Paia de seu cognome por ter Sampaio no seu apelido, que é, e era, um apelido respeitabilíssimo, nove ou dez.
Mas não pensem que isto é um texto jocoso. As coisas do dinheiro são sempre sérias, e nós éramos empresárias seriíssimas. Não esbanjávamos o capital, não tínhamos gestos sumptuários, nem negócios ocultos.
Paia era loirita, com a pele lisa e rosada de uma bolacha araruta e a mesma rotundidade. Eu já deixara de ser, loirita, e rotunda, nem nesse tempo fui. Eu talvez fosse um pouco mais alta, ela um pouco mais para os lados. Éramos mais que amigas, éramos sócias, leais e compenetradas.
Foi assim e dêem-lhe o desconto, pois quem conta um conto, mesmo verdadeiro, acrescenta um ponto.
Foi assim o empreendimento e a crise. O descalabro inesperado e acaso injusto, como tantos hoje em dia.
Éramos ambas alunas de um colégio de religiosas, sito à Lapa. Severo e mimado, carinhoso até e paciente com as mais pequenas.
Paia e eu não éramos companheiras de carteira, nem tal coisa havia. As carteiras eram individuais, com uma tampa de madeira que se levantava para inspeccionar a ordem dos conteúdos: lápis de cor, cadernos, livros escolares com meninos e meninas de braço estendido, as meninas a varrer e os meninos a aprender. Nada de jogos, nem de brinquedos. A caixa com tampa corredia, rectangular e comprida como uma régua, que continha o lápis, a borracha e a primeira caneta que esborratava os dedos, foi a nossa primeira Caixa Geral de Depósitos. Mas já lá vamos.
Tinha o colégio, espaçoso e airado, duas entradas. Uma, um portão de ferro imponente, aos fundos do jardim e que só era aberto por ocasião de grandes festejos e visitas de pais; a outra, virada à Rua de S. Félix, era uma aberta na porta-cocheira por onde entrávamos e saíamos todas, grandes e pequenas.
Ora, na esquina mais abaixo, havia uma mercearia. E dentro da mercearia uns grandes frascos de vidro, com chupa-chupas deslumbrantes, vestidos ou despidos. Finos como um lápis de cor, de todas as cores, cada cor seu paladar, estavam embrulhados em papel vegetal transparente, com uma asinha em cada ponta, enroscada como um pequeno leque. Uma graça e uma tentação prestigiosa de exibir nos recreios. Não deixavam de ter os seus perigos, de tangerina ou de limão, ou morango: iam afilando à medida que eram sugados e, às tantas-quantas, estava-se com um estilete entalado entre a língua e o palato.
Todas tínhamos semanadas; nem lembro bem para quê. Uns bolinhos de ovos, ou seriam bolas-de-Berlim à venda no grande pátio, durante os recreios. Creio que era mais uma questão de status, ter moedas no bolsinho do bibe.
Mas chupas, não havia.
A escassez de tal bem, vinha da trajectória de cada uma, não da carência de capital. Trajectória e meios de transporte. Vinham de carro ou na camionette.
A Paia e eu vínhamos a pé, ela com a criada (nesse tempo não havia empregadas) e eu de baixo, das Janelas Verdes, com a ordenança de meu pai.
Resolvemos, não lembro de qual a iniciativa privada, comprar grosas para revender nos recreios a lucros de tostões. Tudo às claras, um negócio limpo.
Ora um dia, uma das freiras, mais graduada ou mais avisada, veio indagar daquela chusma de meninas à volta dos nossos bibes enfunados, quais rainholas santas, da mercadoria.
Um drama. Mães chamadas à sala de visitas da Superiora, a de Paia chorosa, a minha furiosa. Aquilo era lá coisa de meninas educadas. Uma vergonha.
A mercadoria e o capital sonegados, duas semanas sem semanada, uma sem local de trabalho da empresa, o recreio. E os nossos armazéns e cofres, pastas escolares e carteiras espoliados de bens e capital acumulado.
- Mas para que queriam as meninas o dinheiro?
Paia, tão perplexa como eu, mas humilhada e ofendida, respondeu com toda a dignidade:
- Para comprar mais chupas.
Maria Velho da Costa
3 comentários:
Juro!
:(
para a próxima inicio a leitura pelo final do texto.
E assim se cerceia, no embrião, o futuro de grandes empreendorias, arrancando-se o ímpeto comercial, como se se tirasse o doce a uma criança.....
electrocutada no berço praticamente, uma decisão drástica essa das madres, que pena Gi, hoje estarias riquíssima :-)))
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