quarta-feira, 20 de maio de 2009

O IMBONDEIRO

O solitário imbondeiro no centro daquela vasta imensidão rural, com os seus ramos nus, assemelhava-se a uma sofrida mãe a quem haviam arrancado os filhos de seus descarnados braços.
Sempre me impressionou e comoveu pelo seu modo altivo e lúgubre; mal chegávamos à nossa casa de campo, o que acontecia a altas horas de noite, acenava-lhe e gritava: Boa Noite, dorme bem, amanhã já vou ter contigo.
E assim acontecia. Falava com ele, tentava abraçar com os meus pequenos braços o seu longo tronco, rodando à sua volta e envolvendo-o, tal como costumava abraçar as pernas de minha mãe.
Era ao pôr-de-sol que o seu semblante escuro silhuetando-se no róseo-alaranjado do ocaso se revelava em toda a sua beleza.
Nessas alturas morria de amor por tão perfeito momento.
Uma vez ele resolveu contar-me a sua história.
Tinha sido, um dia, há centenas de anos -diz a lenda que os imbondeiros vivem até cerca de seis mil anos- uma escrava que havia sido desflorada pelo filho de um fazendeiro de quem era serva.
Dele teve vários filhos, amavam-se os dois e julgavam ser eternamente felizes.
O Pai não os deixou casar; enviou o filho para Lisboa e desterrou-a a ela para aquela vasta savana, sem mantimentos; os seus filhos foram vendidos em mercado escravo.
Chorou anos a fio, o que lhe matava a sede e, por um misterioso desígnio da Natureza, sobreviveu a todas as intempéries.
Confundiu-se com a paisagem e o Deus da Savana, com pena, transformou-a na mais bela árvore de África.
Foi a sua sorte, a suprema felicidade; assim disfarçada pôde ver o seu filho mais velho, Sahúli, tornar-se num belo homem, livre e guerreiro; bondoso e respeitado veio a ser o soba daquela região.
Ela, viveu longeva, idolatrada por todos e, grata, oferece-se toda: das suas raízes extrai-se um corante vermelho, o sangue por ela derramado, utilizado em olarias e tecidos; da sua grossa pele extraem-se fibras de que se fazem cordas e tecidos que vestem seus filhos; a polpa dos seus frutos, quando seca, transforma-se em farinha que alimenta os seus filhos; é de uma imensa riqueza proteica tendo, inclusivé, fins medicinais; as suas sementes, depois de torradas, é um petisco dos deuses; as suas folhas são cozidas em sopa e servidas em saladas.
Floresce apenas uma vez por ano; uma linda flor, que fica sempre de cabeça para baixo, como ela ficou, anos a fio, chorando, esvaindo-se; o cheiro dessa flor não é agradável; cheira a fétido, a carniça, para que não seja arrancada por quem tanto mal lhe desejou.
Sobreviveu ao seu algoz, de quem ninguém fala.
Dela vos falo eu.
Diz uma das lendas que o imbondeiro, por ter muita inveja das demais espécies, foi punida pelos deuses que a puseram de cabeça para baixo, ou seja, a copa foi enterrada e as raízes ficaram para cima, por isso as suas flores cheiram a fétido e a carniça.
Mas ninguém falou com um imbondeiro, só eu.
O seu nome é M'bondo e ainda deve lá estar no meio daquela savana, pois é a Árvore do Tempo.

13 comentários:

paulofski disse...

Desconhecia o que é o imbondeiro. Fui indagar pela rede: Imbondeiro Adansonia digitata, L., da família das bombaceae, a mesma das ceibas.
A mesma da terra negra que quem lá viveu nunca esqueceu. Parece que o imbondeiro só dá fruto quando muda de roupa!

Si disse...

Respirei África neste texto e bebi palavras que me faltavam.

P.S. - Será que esta coisa da geminação funciona mesmo?????
Palavra de honra, até parece bruxedo! Livra!

Flip disse...

Gi
é a árvore típica da minha banda, com as mucuas a penderem dos seus ramos e muitas vezes as pembas (tipo abutre - ave de rapina) nos poleiros, parece que esperavam o pôr-do-sol...
:-)

Anónimo disse...

Gi: este texto é delicioso. Gostei muito, muito de o ler. É de uma ternura indescritível.

Patti disse...

Gostei da imagem do castigo: cabeça enterrada e raízes para o céu.
E se é a Árvore do Tempo, imagino as histórias que virão dele.

1/4 de Fada disse...

É das coisas mais impressionantes que há em Angola, e não as há poucas. Fizeste-me lembrar de uma história linda bem a propósito... tenho que ir procurar. Logo verás se encontrei ou não.
Estou de acordo, se há uma Árvore do Tempo, é esta, sem dúvida nenhuma.

Laetitia disse...

Gostei imento de ler este teu post.

Obrigada!

Beijinhos

PAS[Ç]SOS disse...

Sempre me pareceu que as pessoas que falam de África [eu só conheço alguma, mas cá de cima do Norte] usam palavras embaladas num tom morno, mas muito límpido. Como se tivessem à sua frente uma paisagem sem orla visível. Como se cantassem a serenidade duma vida que não acaba. Voltei-o a respirar aqui. Por outro lado fica-me, sempre e também, uma outra sensação: quem fala de África, fá-lo com muita saudade. Derretida, dissimulada talvez… mas indestrutível.

PDuarte disse...

(silêncio)

Gi disse...

PDuarte: O silêncio pode ser traduzido por palavras?

PDuarte disse...

não.
em textos de nivel superior as palavras dos outros só estragam.

Filoxera disse...

Linda, esta história. Pensava que era "embondeiro". Faz-me sempre remeter àquela África que o meu tio amou e onde morreu. Sinto-me transportada para lá sempre que vejo uma foto destas e não perco a esperança de um dia visitar boa parte de Angola.
Beijos.

Gi disse...

Podes escrever das duas maneiras.