domingo, 13 de dezembro de 2009

O AUTOMÓVEL IA DESAPARECENDO

Eu explico como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como foi...

Quando tenho um automóvel, limpo. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para fazer exercícios, para ele não ficar sujo.

O ano passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a camurça é que ficávamos azuis. Não riam... A camurça ficava realmente azul: o meu carro ia passando para camurça. Afinal, penei, não estou limpando este carro: estou-o desfazendo.

Antes de acabar um ano, o meu carro estava metal puro: não era um carro, era uma anemia. O azul tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de sangue azul.

Vi que tinha de pintar o carro de novo.

Foi então que decdi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pntado tiver tendências para a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura deve estar pegada, como o cabelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.

Pensei eu: quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável? Lembrei-me que devia ser o Bastos, lavador de automóveis com uma Caneças de duas portas nas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve portanto saber o que vale a pena esfregar.

Procurei-o e disse-lhe: "Bastos amigo, quero pintar o meu carro de gente. Quero pintá-lo de uma esmalte que fique lá, com um esmalte fiel e indivorciável. Com que esmalte é que o hei-de pintar?"

"Com BERRYLOID", respondeu o Bastos, "e só uma criatura muito ignorante é que tem necessidade de me vir aqui maçar com uma pergunta a que responderia do mesmo modo o primeiro chauffeur que soubesse a diferença entre um automóvel e uma lata de sardinhas".

"Perfeitamente..."

"Com que é que você quer pintar um carro", continuou o Bastos sem me ligar importância, "senão com um esmalte que seja ao mesmo tempo brilhante e permanente? E, ainda por cima, fácil de aplicar... Isto do fácil de aplicar é comigo, mas é uma virtude, e as virtudes citam-se... Vá-se embora!..."

"Bom...", disse eu.

"Isto de esmaltes de nitrocelulose", prosseguiu o Bastos, dando-me um encontrão, "não é um assunto de mercearia a retalho. Tem uma coisa maçadora a que se chama ciência. Sabe o que é? Mas é maçadora para quem prepara as coisas; para nós, que as recebemos preparadas para as aplicarmos, é um alívio e uma alegria. Este BERRYLOID é o produto de longos cuidados feito no primeiro laboratório de tintas, lacas e vernizes. Percebeu? Não é o primeiro produto do género que apareceu, porque o ser primeiro está bem se se trata de estar numa bicha, mas não se se trata de tintas ou de coisas que metem estudo e provas. Não nas tintas e na prática, a última palavra é que é a primeira".

Meu caro Bastos...", disse eu.

"Só BERRYLOID", respondeu o Bastos, virando-me as costas.

"Eu queria agradecer...", prossegui.

"Traga o carro", disse o Bastos.

Levei-lhe o carro e ele pintou-o a BERRYLOID. E não há camurça, nem chuva, nem poeira da pior estrada, que consiga envergonhar esse esmate de aço. Sim: o Bastos tratou-me mal, mas tratou bem a verdade. Não há nada como o BERRYLOID.

... Tanto assim que, quando comprei o meu segundo carro, tratei logo de saber se ele vinha já pintado a BERRYLOID. Ele aí está na base da página e no fim a minha história. Passa-se a camurça, mas é preciso usar óculos fumados: o brilho deslumbra. E, o que é mais, deslumbrará, porque dura.

A minha camurça dura eternamente. O que se tem gasto muito são os óculos fumados; e os elogios dos amigos que vêem os meus carros pintados a BERRYLOID.

Fernando Pessoa in "Contos, Fábulas e outras Ficções"
Este foi o texto escrito por FP para a campanha publicitária de uma marca de tintas para automóvel.

5 comentários:

Si disse...

Até num simples anúncio comercial, Fernando Pessoa sabia ser genial.
Bom Domingo, Gi ;)

Pitanga Doce disse...

Era de um publicitário assim que a minha empresa precisava! Será que ele está disponível até o fim do ano??? hehe

bom dia Gi

Olha, a PresidentA tirou férias outra vez. Isto assim não pode ser. O que nos vale é o "vírus" que deixou lá.

Vício disse...

com alguns ajustes também podia servir para cosméticos...

Girstie disse...

Não conhecia. Está mesmo engraçado :D

Ah ganda FP. Escrevia tudo bem.

beijos

Patti disse...

Um must!