domingo, 2 de novembro de 2008

A ILHA

Contaram-me de uma ilha
muito difícil de achar.
Ficava no fim do mundo.
Ficava no fim do mar.

Chamava-se Trapafulha
(os nomes que pr'aí há!)
Quem lá vivia, só queria
não ter de viver mais lá.

Não que a ilha fosse avara,
terra sem pão para dar.
Mas governava-a gente
de muito mau governar.

Havia chefes a esmo,
um nunca mais acabar.
Todos mentiam, roubavam,
chegavam mesmo a... matar.

Nos chefes todos, mandava
o Grande Chefe, o Mandão,
que tinha, dos chefes todos,
excelente opinião.

Os ilhéus andavam tristes,
cansados, sem esperança
(com excepção dos que só
sabiam pensar na pança).

E assim, por anos e anos,
tudo a ilha suportou.
'Té que um dia, catrapum!,
tudo, mas tudo, mudou.

Não se sabe como foi,
o que foi que se passou:
ouviu-se alguém a cantar
e Trapafulha... girou.

Girou, girou e girou,
devagarinho, no mar,
Parecia uma bailarina,
só lhe faltava saltar.

Girando a ilha, girava
tudo quanto nela havia:
gentes e bichos e coisas
e até as cores do meio-dia.

Logo, assustador, os chefes,
da voz mandaram saber:
que trouxessem quem a ilha
assim fazia mexer.

Uma coisa estranha houve
nisto de a ilha girar:
os ilhéus tristes ficaram
alegrinhos de espantar

e, embora a ilha rodasse,
rodasse como um pião,
eles, ao contrário dos outros,
não iam parar ao chão.

Os outros, os que na pança
não paravam de pensar,
pareciam baratas tontas,
no chão, de pernas pr'ó ar.

E aos chefes aconteceram
coisas do arco da velha:
as palavras que diziam
saíam-lhes pela orelha.

Em vão, os Guardas buscaram
a voz pela ilha toda.
Chegaram ao fim sem novas
... e a cabeça a andar à roda.

A ilha, gira que gira,
lá foi viajando pelo mar.
Parecia uma bailarina
(alguns viram-na saltar).

Os chefes e os pançudos,
fartos de tanto esperar
que a voz, enfim, se calasse
e a ilha desse em parar,

partiram pr'a terra firme
a nado (alguns, pelo ar)
chegaram os que chegaram
... não vale a pena contar.

Liberta deles, a ilha
parou logo de girar.
E os ilhéus então viram
quem tinha estado a cantar.

A voz era tão suave
e era tão bela a canção!
Logo ali a decoraram
para um caso de aflição.

Quem cantou? O que cantava?
Não sei, não posso contar.
Tudo quanto me contaram
acabei de relatar.

Raul Malaquias Marques
in "Aconteceu num Reino deste lado do Mundo"

2 comentários:

Patti disse...

Era uma óptima ideia, que aqui o nosso rectângulozito também começasse a girar a girar e os mauzões a bazar a bazar.

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Gi,
desvantagens de estarmos numa Penísula, arcamos com o princípio isuportável, sem esperança de que o istmo deixe dar a volta ao texto...
Beijinho