Nasceu de tempo incerto quando uma rajada de metralhadora esventrou o corpo de sua mãe.
Cuspido num estertor ali ficou soltando vagidos para a terra ocre que o olhava desolada.
Uma gata que tinha perdido as suas crias encontrou-o. Pegou-o pelo cachaço. Levou-o.
Assim cresceu entre vagidos e miados naquela terra já de ninguém, devastada por anos e anos de guerra.
Nasceu e a guerra morreu ali; tinha sido o último ser humano a ver a luz do dia por aquelas bandas. Precoce no tempo. Mas fora dele. Enquanto todos os outros pereciam.
Confundiu-se com a paisagem. Cresceu esquelético, cadavérico de face, vestindo andrajos espalhados pelos ramos desgrenhados das árvores (que morreram de pé) e pelos jazentes pedregulhos na terra.
Alimentava-se de carne putrefacta e raízes secas e defumadas.
Quando uma equipa da AMI o encontrou naquele holocáustico cenário realizou que a morte no final tinha corpo. Tinha alma.
Alto, longilíneo, de grandes olhos cavos e dentes amarelos, braços abertos, compridos, em riste, dedos em forquilha, dirigia-se decididamente para eles.
Longos cãs emolduravam o rosto. De fiapos negros vestido, assemelhava-se a um abutre.
Atirou-se aos membros da equipa com olhar guloso. Foi este olhar que os salvou a todos. O olhar de espanto com a paixão sentida que aqueceu todo o seu ser, anteriormente, gelado. Estacou.
Os antropologistas determinaram que não teria mais de 18 anos e era o único sobrevivente da guerra que tinha assolado aquela região perdida para o Mundo.
Chamaram-lhe Kalashnikov e traçaram-lhe uma história.
Escrito numa paragem de autocarro em 15.06.2009 ... enquanto matava o tempo.
5 comentários:
enquanto matavas o tempo? Gi, que filme viste ontem antes de adormeceres? :-))) mas olha que acho que já vi este filme...o autocarro era o 31? :-)
tás com a imaGInação aceleradíssima, e gostei :-)
Gosto desta escrita.
Abrupta e crua, como só certos temas podem ser escritos.
Com adjectivos fortes a despoletar emoções muito para lá do simples sorriso ou da inevitável gargalhada que define o tom habitual deste blog.
É o outro lado da Gi. A que sente coisas que muitos optam por ignorar.
Que bela surpresa, Gi!
Parabéns. Este post está tão belo quanto humano.
Um beijo, linda.
Estas coisas do Eu que interroga o Tu...E tudo acaba bem, pois os olhos são o espelho da alma e há ainda que esteja atento aos seus olhares.
Gosto destes seus registos, Gi.Como diz a Si, a crueza das palavras despoleta emoções fortes.
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