domingo, 4 de outubro de 2009

O SARAIVA ou O SARAIVA E AS MENINAS

Havia em tempos, no Porto, um rapaz estudante, vindo das províncias do Norte, chamado Saraiva. Este rapaz tornara-se notável entre os companheiros pela certeza da própria perspicácia e a sua igual certeza de seus talentos de declamador. A cada frase, por simples que fosse, que lhe parecesse envolver uma mentira, tomava a mentira como dirigida inutilmente contra a rocha da sua esperteza; e, levando o indicador direito à pálpebra do olho direito, descia-a, no gesto dos álacres, e dizia ao interlocutor, em aviso e ameaça alegre, "Eu sou o Saraiva!" E o outro ficava sabendo que o não conseguira enganar. O indicador erguia-se livre.

Esta ciência certa, considerada pelos outros rapazes como ridícula em si-mesma, levou-os a combinar, servindo-se da preocupação que o Saraiva tinha de declamador, uma cena cómica, destinada a, de vez, pôr o Saraiva em salmoura social. Sabendo o horror do ridículo, que estava latente naquela constante preocupação de que não era enganado, combinaram com várias raparigas das suas relações, de boas famílias e condição decentíssima, uma sessão em casa dos pais de umas delas, para a qual convidariam o Saraiva para declamar. E estava combinado que, apresentado o Saraiva e convidado a mostrar seus dotes de declamador, eles fossem, por fim, reconhecidos com uma gargalhada geral. Desta, fixaram bem, o Saraiva se não se escaparia, e ficariam pagos de tanta irritação de certeza.

Expuseram ao Saraiva que havia várias senhoras que gostariam de o ouvir declamar, pois lhes constara o que valia na matéria, e com ele estabeleceram que o apresentariam em casa dessas senhoras, podendo ele aparecer, em tal noite, e a tais horas.

Grato, o Saraiva acedeu e a combinação ficou feita. Sucede, porém, que, chegado a casa, começou a meditar no convite, e, desde logo, a desconfiar dele. "Ali há coisa", pensou o Saraiva. E, sozinho, diante do espelho, levou o indicador direito ao olho direito, no gesto baixante da esperteza, "Mas eu sou o Saraiva!", apontou para si mesmo.

E meditou, "Que diabo será a partida?". Não tardou que descobrisse. Tratava-se de encher uma casa qualquer de uma quantidade de meretrizes, dispostas com aparência de senhoras e meninas, e de o convidar (a ele Saraiva!) para ir fazer diante delas o papel de recitador. Conclusão lógica, conclusão natural. E o Saraiva tomou mentalmente as suas precauções.

Chegou a noite, e chegou o Saraiva. E, junto com os vários camaradas, foram dar à casa onde estavam reunidas as senhoras todas que os esperavam. Para entrada e deslumbramento, os apresentantes, aberta subitamente a porta da sala, quese revelou cheia de senhoras, apresentaram, "Minhas senhoras, o Sr. Saraiva!", com o ar de quem apresenta um dos homens mais célebres do mundo.

Então o Saraiva, álacre, deu um pulo para o meio da sala, e braços abertos, gritante e alegre, bradou para as senhoras todas, "Eh, putedo!"

E depois, voltando-se a rir para os apresentantes lívidos, inclinou a cabeça e levou à eterna pálpebra direita o eterno indicador direito, "Vocês esqueceram-se que eu sou o Saraiva"...



Moralidade:

1. Não ser Saraiva.

2. Na dúvida ser Saraiva, porque aqui o Saraiva foi o parvo e os outros é que ficaram atrapalhados.

Quando uma nação crê firmemente em si mesma, humilha os outros ainda quando se engana e é ridícula. Coisa por cousa, mais vale ser Saraiva. Porque é preciso não esquecer o resultado prático de tudo isto. As raparigas ficaram insultadas, os rapazes ficaram envergonhados: quem ficou vencedor foi o Saraiva.

Fernando Pessoa in "Contos, Fábulas & outras ficções"

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