domingo, 8 de fevereiro de 2009

CARTA


  1. se v.exa. me permite
    eu gostaria de dizer o que penso.


  2. em primeiro lugar penso
  3. que v.exa. anda
    no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio.


  4. v.exa. dirá que eu estou afirmando
    que v.exa. anda para trás.



  5. na verdade, nada me impede de afirmar que
    v.exa. anda para trás.
    não foi isso porém que eu disse.



  6. com efeito, não sei
    se v. exa. anda para trás, segundo penso,
    v.exa. anda no sentido oposto ao dos ponteiros
    do relógio.


  7. seria necessário poder afirmar com toda
    a segurança que os ponteiros do relógio
    andam para a frente,
    para poder afirmar
    com igual segurança
    que v.exa. anda para trás.



  8. mas quem está em condições de
    afirmar com toda a segurança
    que os ponteiros do relógio andam
    para a frente? ninguém está
    em condições de afirmar com toda a segurança
    que os ponteiros do relógio andam
    para a frente, porque, como v.exa. sabe,
    os ponteiros do relógio andam à roda.



  9. a única coisa que se pode afirmar com toda a segurança
    é que os ponteiros do relógio andam
    à roda para um lado e v. exa.
    anda à roda para o outro. de modo que v. exa. com
    o seu movimento anula o movimento
    dos ponteiros do relógio e vice-versa.


  10. na verdade é como
    se v. exa. não andasse e como
    se os ponteiros também não andassem.


  11. com efeito, não creio que v. exa. ande para a frente
    nem que v. exa. ande para trás, não creio que v. exa.
    ande para cima nem que v. exa. ande para baixo, não creio que v. exa.
    ande para a direita nem que v. exa. ande para a esquerda,
    apenas suponho que v. exa. anda à roda de si mesmo,
    no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio e,
    ainda,
    de olhos fechados, para não enjoar.


  12. o que eu, em duas palavras, em segundo lugar penso,
    é que v. exa. usa um instrumento de osso ou de plástico
    com uma enfiada de pontas aceradas, chamado pente,
    a fim de estar sempre bem penteado, pois nada
    perturba v. exa. que o receio de não
    estar bem penteado, nada perturba mais
    v. exa., e é por isso que só quando v. exa.
    acaba por perder o cabelo todo se começa a sentir um pouco à vontade. é, segundo suponho,
    por isso.
  13. de forma que a visão de
    v. exa. e dos restantes concidadãos
    andando todos à roda de si mesmos,
    no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio,
    de olhos fechados e cabelos cuidadosamente penteados
    é um espectáculo alucinante,
    que v. exa. infelizmente não pode apreciar,
    por ter os olhos vendados.
  14. claro que v. exa. julga que só v. exa.
    faz o movimento que v. exa. faz, e o mesmo
    julgam os restantes concidadãos, pois
    todos se consideram uma excepção, um
    caso único, especial, e no entanto todos
    formam uma regra, no seu movimento regular,
    no seu círculo vicioso,
    à roda de si mesmos,
    no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio,
    de olhos fechados
    e cabelos cuidadosamente penteados.
    Alberto Pimenta


2 comentários:

Anónimo disse...

queira v. exa. saber que acaba de fazer uma perfeita descrição de si mesma.
é bom assumirmos publicamente quem somos!

aespumadosdias disse...

Muito bom!
O movimento depende do referencial.
Gostava de ouvir as crónicas do Alberto Pimenta na TSF.